terça-feira

III - James Stewart - Pós Guerra

 
Quando regressou, após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, James Stewart já era tenente-coronel do exército norte-americano, depois de iniciar a guerra como recruta e pegar no pesado, realizando várias missões como piloto de bombardeio. A princípio, não quiseram aceitá-lo com medo que morresse em cobate, mas ele tanto fez que conseguiu participar das missões. Dizem que houve uma enorme fila admiradoras do sexo feminino no aeroporto quando ele embarcou. Ainda assim demorou pra voltar e, de certa forma, sua vida passou a estar sempre ligada às Forças Armadas. Continuou na Força Aérea como reservista até chegar a General-Brigadeiro e se aposentar mais tarde nos anos 50. Todos as suas medalhas foram fazer companhia ao Oscar ganho por Núpcias de Escândalo (The Philadelphia Story) na vitrine da barbearia do pai na Pensilvânia. Mas a guerra o abalou pra sempre.

Nunca falou sobre ela, o que muitos creditam ao choque de ter matado tantas pessoas, além de ver seus companheiros morrerem. Inegavelmente passou por um crise que o fez pensar em largar o ofício de ator. Lelan Hayward não era mais seu agente, nem tinha mais contrato com a MGM, e, enquanto ele servia na guerra, muitos outros atores ficaram em casa preservando sua fama junto ao público, enquanto Jimmy só havia participado de documentários feitos pelos Aliados enquanto estava no front. E os que foram depois dele, que foi o primeiro, voltaram mais cedo. Sem falar dos novos astros que surgiam. A Segunda Guerra foi um divisor de águas em Hollywood como não se via desde o fim do Cinema Mudo e muitas estrelas do passado perderam seu espaço. Algumas ainda arrumaram trabalho, mas nem todas com a força de antes, se tornando pálidas sombras do que tinham sido. Nesse cenário difícil, se tornava ainda mais grave o desencanto dele pelo trabalho.

Foi quando, em 1946, Lionel Barrymore o chamou a participar de um projeto de Frank Capra, que se tornaria sua última e mais marcante parceria com o diretor. Um filme chamado A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life). Capra, que também acabara de voltar da Guerra, tinha fundado a produtora independente Liberty Films com George Stevens, William Wyller e Sam Briskin pra produzir o filme com distribuição da RKO. Apesar da impressionante afinidade que havia entre Capra e Stewart, neste filme, assim como em Do Mundo Nada Se Leva (You can't take it with you) e A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith goes to Washington), o astro não foi a primeira opção para o papel. Inicialmente queriam que Cary Grant protagonizasse ao lado de Jean Arthur, mas não conseguiram nenhum dos dois. Depois do astro, ainda tentaram Olivia de Havilland e Ginger Rogers (ambas atrizes que viveram um romance com Jimmy na vida real), mas no fim acabaram contratando Donna Reed, que no ano anterior tinha feito o clássico do terror O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray) na Metro, o que se revelou um grande acerto. Ela até mesmo recusou dublê em uma das cenas em que devia arremessar uma pedra, pois era exímia jogadora de basquete. A história é baseada num conto de Philip Van Doren Stern, que foi estendido no roteiro, co-escrito pelo próprio Frank Capra, mas é nítida a inspiração também em Um Conto de Natal de Charles Dickens.

A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life) é a história de George Bailey, mas também é um pouquinho a história de cada um de nós, inclusive do ator que o interpretou. George cresceu na cidadezinha de Bedford Falls e sempre foi um jovem sonhador. Queria viver, viajar o mundo, construir grandes obras, mas seu coração sempre acabava mudando o seu destino, fazendo-o se sacrificar por alguém. Salvou a vida do irmão, mas ficou surdo de um ouvido (outra semelhança com Stewart que tinha problemas de audição), impediu um farmacêutico com quem trabalhava de ministrar um remédio errado a uma criança, ajudou seus amigos e vizinhos e, mais importante, contra a sua vontade assumiu o negócio de seu pai e seu tio Billy, os quais emprestavam dinheiro sem juros aos habitantes da cidade para que eles pudessem financiar sua casa própria, atitude que era constante entrave nos negócios do milionário Henry Potter, Lionel Barrymore, que ganhava uma fortuna explorando a população de baixa renda da cidade com aluguéis caríssimos. No entanto, isso arruinou o sonho de George de fazer uma faculdade, mas ele seguia sonhando... E sonhando George continuou na sua cidadezinha... Compartilhou esses sonhos com sua amiga Mary, Donna Reed, uma jovem também sonhadora, e por quem se viu irremediavelmente apaixonado, mas o único sonho que acabou conquistando foi se casar com Mary, enquanto seu irmão já terminara sua faculdade, casara e seguira carreira trabalhando com o sogro... E George continuou na sua cidadezinha... Até que Henry Potter tenta comprá-lo, mas George segue seus princípios, ganhando um inimigo. 

A Felicidade Não Se Compra
Os anos passam, os filhos nascem, uma guerra vem e se vai, a vida encarece... e George continua na sua cidadezinha... Até que um dia, próximo do Natal, as coisas vão ficando cada vez mais difíceis, chega a um ponto em que todos os amigos de George em Bedford Falls dependem dele, enquanto ele mesmo mal consegue sustentar a família. O âmago do drama ocorre quando Potter se aproveita de uma distração do Tio Billy, tendo a possibilidade destruir George e amigos em mãos e aproveitando pra se vingar. Desesperado, George vaga de bar em bar sem achar uma solução fora do copo de bebida e como último recurso decide se matar para a família poder aproveitar o seguro. Ele se dirige a uma ponte decidido a pular. Porém, ao chegar lá algo inesperado acontece: outra pessoa pula da ponte primeiro! George se joga pra salvá-la e assim conhece Clarence, Henry Travers. Após se abrigarem, George desabafa com ele dizendo que seria melhor se não tivesse nascido. Clarence, então, se revela como o seu anjo da guarda, em missão para conseguir suas asas. Segundo ele toda vez que um sino toca um anjo ganha asas (óbvia referência a Peter Pan) e então realiza o desejo de um incrédulo George. Ele volta então a Bedford Falls e, choque após choque, vai descobrindo a verdade nas palavras de Clarence. Naquela que talvez seja a reviravolta mais fantástica da história do Cinema, George não reconhece seu lar e não é reconhecido por seus entes queridos... PORQUE SUA VIDA FOI APAGADA DA EXISTÊNCIA!

É muito difícil comensurar num texto a importância de A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life) na cultura popular mundial. O filme não fez muito sucesso na estréia, mas mesmo assim a produção foi indicada a vários Oscars, incluindo diretor e ator para Stewart, mas foram perdidos para Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Beste Years of Our Lives), filme com orçamento cinco vezes maior sobre a dura readaptação de três ex-combatentes da Segunda Guerra à seus lares e, ironicamente, dirigido sob contrato pra MGM por William Wyller, um dos sócios da Liberty Films, que acabou falindo. Talvez por essas e outras, Wyller ficou conhecido como "diretor de encomenda", já que sua única tentativa de criar obras independentes foi prejudicada indiretamente por seu trabalho para uma grande produtora. Mas seria absurdo culpá-lo por sua competência. Até porque se você perguntar a dez cinéfilos qual dos dois é melhor, uns vinte vão aparecer dizendo que é A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life). Isso porque o filme de Wyller tem um grande valor histórico e é um clássico, mas o de Capra é uma obra atemporal e uma verdadeira lenda, praticamente o filme mais copiado de todos os tempos. Sua trama, seus personagens e conceitos são usados ou citados constantemente em vários meios de comunicação. Então por que ele não fez o sucesso esperado? Porque o mesmo público que antes prestigiava Capra quando queria espantar o fantasma da Depressão, agora parecia ver sua obra como algo antiquado e ingênuo para um mundo pós-Guerra, de onde os Estados Unidos emergiam como super-potência global, como se houvesse uma necessidade inconsciente de querer ser "adulto". Não foi só o cinema quem mudou. O povo e o país inteiro haviam mudado. Tanto que no ano anterior outra produção de cunho duro e realista ganhara o Oscar, o excelente Farrapo Humano (The Lost Weekend) de Billy Wilder. E essa linha de pensamento pareceu ser a tendência da Academia na época ao premiar Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Beste Years of Our Lives), mesmo este não sendo melhor que A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life). Mas o tempo é o senhor da razão.

Nos anos 70, quando caiu em domínio público, o filme de Capra passou a ser apresentado sempre no fim do ano pelas emissoras de tv, tornando-se mais simbólico no Natal que o próprio conto de Dickens. Hoje o filme é cult, mas ainda é considerado ingênuo por alguns, além de outros o acusarem de não contribuir para a arte cinematográfica com nenhuma inovação, embora só no cinema é possível ver reflexos da história em incontáveis filmes como Destino em Dose Dupla (Mr. Destiny), Ghost - Do Outro Lado da Vida (Ghost), Todo Poderoso (Bruce Almighty), Um Homem de Família (The Family Man), Click, Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças (Eternal Sunshine of The Spotless Mind), Efeito Borboleta (The Buterfly Efect), Nimitz - De Volta ao Inferno (The Final Countdown), a trilogia De Volta Para o Futuro (Back to The Future), O Show de Truman, O Show da Vida (The Truman Show), entre muitos outros, além do seriado Além da Imaginação (The Twilight Zone). Isso porque, apesar de filmes anteriores adotarem temas parecidos como Que Espere o Céu (Here Comes Mr. Jordan) de Alexander Hall em 1941 e O Tempo é Uma Ilusão (It Happened Tomorrow) de René Clair em 1944, foi A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life) o primeiro filme falar diretamente sobre o fascinante tema viagem no tempo/realidade paralela. Mas ninguém até hoje fez isso como Frank Capra, porque ninguém focalizou o conceito do "o que aconteceria se..." sob um aspecto tão radicalmente humano. No começo somos apresentados ao passado, depois ao presente, resultado das escolhas anteriores e o clímax mostra um mundo onde o presente é afetado por mudanças no passado. Alguns acham um erro o que na verdade é uma sacada genial de Capra, pois através dessa elipse, a viagem no tempo acontece na mente do público, que vai deduzindo boa parte do que aconteceu através das mudanças do mundo paralelo, o que por si só torna a narrativa bem mais inteligente do que o jugo preconceituoso dos que criticam sua história simples. E na verdade a simplicidade é a chave de tudo, porque partindo desse ponto obras posteriores passaram a buscar outros mundos, realidades, possibilidades e sonhos como os de George, ou melhor, de Capra, e A Felicidade Não Se Compra (It´sa Wonderful Life) teve papel fundamental nesse desabrochar do inconsciente coletivo na ficção. Depois deste filme, a frase "O Que Aconteceria se..." nunca mais foi a mesma.

Mas talvez o maior êxito da produção seja a história de amor, drasticamente afetada pela dinâmica do filme. Ironicamente hoje tal expediente é implacavelmente taxado de lugar-comum, mas essa ousadia narrativa deve ter causado muito estranhamento na época, especialmente na cena do reencontro no mundo paralelo, uma das mais aflitivas da história do Cinema. O romance por si só já garante a força do filme, tanto que a parte "ortodoxa" da trama, como as cenas da piscina, da Lua e das pedras na casa foram repetidas inúmeras vezes em outras produções. George e Mary vivem um amor simples ao longo de suas vidas, como poderia acontecer nas vidas de qualquer um. É isso que o torna tão precioso e que faz do final algo tão apoteótico dentro do contexto da sua simplicidade. Donna Reed cintila em cena, num papel que tinha tudo pra ser um clichê. A atriz ficou pra sempre imortalizada como a esposa e dona-de-casa perfeita (outra personagem que também serviu de inspiração a tantas outras depois) e ela imprime tal humanidade ao papel que deixaria muitas feministas convictas com lágrimas nos olhos.

Quanto a James Stewart... basta dizer que, se esse não é o papel da sua vida, com certeza é o papel que salvou sua vida. Alguns críticos defendem que a maior força do filme reside no contraste entre um Stewart marcado e transtornado pela guerra e um Capra com sua fé inabalável frente às maiores desgraças da vida, e por isso a produção conseguir soar tão alegre e triste ao mesmo tempo. A partir daí, Jimmy revezaria seus papéis mais cômicos e despreocupados com outros com uma tonalidade bem mais sombria de personalidade, mas talvez aqui fosse o único aonde ele atingiu o auge do equilíbrio entre ambos, como um personagem que não era unilateralmente bom, mas que escolhia fazer o bem, e amargava cada consequência de seus atos ao longo da vida. A experiência marcou tanto que até hoje tanto o astro quanto o diretor consideram esse seu filme favorito, aonde também pela quarta e última vez Beulah Bondi fez o papel da mãe de Jimmy em um filme. Foi assim o fim da parceria entre Capra e Stewart, ao longo da qual o ator foi indicado ao Oscar duas vezes e ganhou o prêmio da rigorosíssima Assossiação dos Críticos de Nova York por A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith goes to Washington), embora seu trabalho mais premiado juntos tenha sido Do Mundo Nada Se Leva (You can't take it with you), que faturou 5 Oscars. Com a falência da Liberty Films e os novos tempos Capra nunca mais filmou do mesmo jeito até se aposentar de vez, com a sensação do dever mais do que cumprido para com a Sétima Arte e o público. Mas a carreira de James Stewart ainda iria longe. Nenhum fracasso profissional ou problema pessoal seguraria mais sua vontade de trabalhar.

Créditos: Aqui

Nenhum comentário:

Postar um comentário